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LGBT’s à rasca na geringonça dos movimentos sociais

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Nos últimos anos assistimos a vários recuos mas também muitos avanços nos direitos humanos em Portugal. Alguns deles nas temáticas LGBT+ mas não é (só) nesses que vou centrar este texto.

“Porque as lutas, mesmo que diferentes, têm que ser solidárias”, dizia o discurso da Academia Cidadã na Marcha do Orgulho de 2016. E é disso que vos quero falar, de quando pessoas LGBT+ fizeram avançar este país, lutando nas ruas, nos empregos, nas escolas, nas suas vidas, pelos direitos humanos, seus e de todes.

Estou certo que já sucedeu antes, provavelmente desde sempre, mas quero-vos contar coisas que eu vivi e assistí, desde há 6 anos, em que me envolvi mais profundamente no ativismo.

Quando criei um evento no facebook, com o nome de Protesto da Geração à Rasca, não podia imaginar que mês e meio depois, a 12 de março de 2011, estivesse nas ruas a maior massa de manifestantes desde o 25 de Abril, até então. Hoje quero aqui fazer justiça dizendo que, sem ativistas LGBT+, não se tinha iniciado na Europa a dinâmica de movimentos de indignação que, por sua vez, influenciaram os “Occupy” em todo o mundo, deram origem a novos partidos, associações, projetos alternativos e de sustentabilidade, fizeram cair governos e abriram caminho a que novas forças progressistas chegassem ao poder ou o influenciassem muito diretamente – como na Irlanda, Grécia, Espanha e Portugal – e tudo começou no nosso país, com esta manifestação em várias cidades.

Por isso vos quero partilhar a “minha História” de como nem eu nem xs minhas/meus amigxs tínhamos qualquer experiência em organizar manifestações, muito menos com as proporções que este tomou.

Por isso, pedimos ajuda. Enviámos centenas de emails, a centenas de coletivos nacionais, para que nos apoiassem na organização e divulgação.

As primeiras respostas foram de pessoas de movimentos LGBT+. Experientes ativistas queer receberam-nos nas suas casas e disponibilizaram-se para ajudar. Ao contrário de outras, que não responderam ao apelo ou o recusaram porque não éramos conhecides no meio ativista, pessoas como a Raquel Freire ou, uma das minhas maiores referências ativistas LGBT+, o Sérgio Vitorino, ofereceram-se para nos ensinar a comunicar com a imprensa, com o público a que nos dirigíamos, a mobilizar eficazmente outros coletivos. Deram-nos apoio “técnico”, força moral e trabalharam incansavelmente antes e depois do protesto para garantir o seu sucesso.

Em comum tínhamos uma coisa: a precariedade. Não é novidade que as populações LGBT+ são das mais afetadas pela exclusão social, pela precariedade e pelo desemprego.

Foram esta e outras franjas que mais sentiram na pele as consequências de uma crise que começou por ser da alta finança mas acabou, pela intervenção salvadora dos Estados aos bancos, a afetar diretamente os direitos mais básicos das pessoas comuns – no acesso ao emprego, à habitação, à saúde, à educação, à democracia…

Como pessoas e coletivos (neste caso, nas Panteras Rosa, a que ambes pertenciam) cientes da interseccionalidade das discriminações, souberam não se fechar na bolha dos seus direitos e deram o corpo ao manifesto, à luta e, por vezes, ao cacetete, para defenderem os direitos de todes.

Se foi fulcral a sua atuação antes do protesto, foi-o também no dia do mesmo, no momento de maior tensão e mais perigoso do dia. Sem a coragem das pessoas LGBT+, que seguiam na cabeça da manifestação, em Lisboa, tudo podia ter corrido mal. Ao descer a Avenida da Liberdade, quando passávamos pelos Restauradores, infiltrou-se uma coluna de neo-nazis. Envergando bandeiras negras, colocaram-se ao lado das bandeiras multicolor. Momentos tensos, de constante provocação por parte dos fascistas, começam-me a fazer pensar que tudo podia descambar em violência a qualquer momento.

No entanto, com tato, tática e inteligência, e com a ajuda da carrinha des Precári@s Inflexíveis (que ainda levou uns safanões), empurrámos literalmente a coluna de fachos para fora da manifestação. E, aliviades, quando estes desistiram e debandaram, no Rossio, seguimos finalmente gritando, vitorioses, “país precário saiu do armário”!

Será que havia Geringonça no governo se não existisse movimento LGBT?

Os tempos que se seguiram foram duros. A entrada da troika, o governo ultra-neoliberal de Passos e Portas, um presidente que não dava um Cavaco pelos direitos, sejam LGBT+, sejam de qualquer outro grupo que não pertencesse à casta de privilegiados instalada no país, fizeram com que fosse preciso que os vários coletivos ativistas LGBT+ tivessem que estar juntos na luta, nas ruas e fora delas, contra uma austeridade que nos fez recuar anos, talvez décadas, em direitos humanos básicos.

Estiveram juntes, presentes e comprometides em todas as oportunidades para contestar as atrocidades cometidas contra a democracia, desde o 15 de Outubro de 2011 até ao 2 de Março de 2013, passando pelo gigantesco 15 de Setembro de 2012. Apanharam porrada na carga policial de Novembro de 2012 e participaram activamente nas Assembleias Populares. Ajudaram a que, pela primeira vez, se tivesse conseguido juntar num mesmo movimento forças do PS, PCP e BE – a Iniciativa por uma Auditoria Cidadã à Dívida Pública.

Foram solidáries! E, por isso, ajudaram a criar um novo paradigma de solidariedade entre forças progressistas que normalmente andavam desavindas.

Sem isto, estou certo que hoje não teríamos conseguido livrar-nos tão cedo da influência das forças conservadoras e neoliberais que nos governaram. Sem este rumo, quem sabe, ter-se-ia aberto caminho ao aparecimento de populismos de extrema-direita em Portugal.

E porque a solidariedade se retribui com solidariedade – não foi só em Inglaterra com os grupos LGBT+ ao lado dos grevistas mineiros, no tempo da Margaret Tatcher, tão bem retratado no filme Pride, e que valeu a descriminalização da homossexualidade quando os sindicatos mineiros começaram a pressionar nesse sentido – em Portugal, a par das recentes conquistas legislativas na luta contra a precariedade, no direito à saúde, à educação, também a adoção por casais do mesmo sexo foi aprovada. Foi, aliás, uma das primeiras medidas aprovadas na nova configuração parlamentar com maioria de esquerda. E a despatologização das pessoas trans está prestes a avançar.

Hoje sei que tal não se dá por pagamento de favores de umas lutas para as outras. Acontece porque lutar por direitos LGBT+, de deficientes, de precáries e desempregades, das mulheres, des migrantes, das classes económicas e sociais mais desprotegidas, é uma luta só. Para começar, porque algumas pessoas acumulam em si várias ou todas estas características. Mas essencialmente porque têm um sentido comum: a luta por um país, por um mundo, em que se garanta a dignidade, a liberdade, a justiça e a equidade no respeito pelos direitos humanos.

Os sinais mostram-nos que se avizinham grandes desafios. Espero que esta “minha História” possa contribuir para estarmos mais alerta e unides. Porque, se já vencemos algumas vezes, podemos repeti-lo, juntes!

Artigo publicado originalmente no site PortugalGay, na série comemorativa dos seus 20 anos de existência.

Este artigo foi escrito utilizando o Acordo Queerográfico

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